Agora estava numa espécie de cela. Só tinha uma sanita, um lavatório, uma cama sem lençóis e as suas botas novas, a um canto. Arrumado como uma mercadoria fora de prazo, ali se aguentava o QUIM PESCAS, e, devido aos químicos anestésicos, manso como um cordeiro. Tentara-se levantar inúmeras vezes mas em vão – caía redondo no chão, sem forças e a revirar os olhos, como num belo par de bebedeiras que já apanhou quando era mais jovem. Onde raio é que estava? O que se passara?
De olhos fechados, porque inexplicavelmente lhe ardiam, só identificava os sons à sua volta. O ar condicionado. Descargas de água que passavam em canalização vizinha àquelas quatro paredes. O toque interminável da pulsação de um mecanismo qualquer. Um elevador que ganhava vida de vez em quando.
QUIM calculou que estava num sítio movimentado. Mas mais que isso, não sabia. O que era feito das pessoas que o trouxeram? Estaria num manicómio? Será que havia enlouquecido sem dar por isso? Será que, se estivesse louco, tinha consciência de o estar ou não?
Alto lá. Sons. Passos! Esforçou-se por abrir os olhos quando ouviu a fechadura da porta a rodar o seu engenho. Três matulões de óculos escuros e fatos pretos entraram no seu restrito cubículo, fechando a porta atrás de si. Guardaram os óculos ao mesmo tempo e sorriram, com sorrisos orientais, de olhos em bico, tez amarela, e cabelo raso, se é que algum.
Chineses. QUIM esforçou-se por ver melhor, duvidoso.
“Hã?”, disse para si, “Onde raio é que eu vim parar? À China?”
Eles sorriram. “Daqui a pouco tempo todo o mundo será a China”, disse um deles. Os outros deram-lhe um olhar descriminador.
“CALA-TE, MING FU, AQUI QUEM FALA SOU EU!”
O QUIM estava cada vez mais confuso. Agora falavam português na China? O indivíduo mandão olhou-o de alto a baixo e depois arrebitou cachimbo, ou melhor, flor de lótus.
“Que fazias no mar ontem?”
QUIM PESCAS não tinha medo deles e fazia tenção de o demonstrar.
“Fazia que fazia o que fazia.”
“O que fazias?”
“Que fazia.”
“Que fazias o quê?”
“Fazia que fazia.”
“Fazias que fazias O QUÊ?”
“Já lhe disse, estava a FAZER que FAZIA.”
O chino passou-se.
“ESTÁS A GOZAR COMIGO? O QUE É QUE SABES? QUEM TE MANDOU IR LÁ? PORQUE É QUE NÃO ESTAVAS NO FUNERAL DO TONE DA SILVA?”
Agora apeteceu ao QUIM, assim como quem não quer a coisa, saber quanto português é que eles conheciam. Respirou fundo, olhou o outro nos olhos, que eram dois, e puxou pelas suas melhores palavras.
“O triste e mórbido luto religioso pelo inóspito falecimento do meu alegre, qual sagaz e dotado de siso compincha, camarada ilustre do duro ofício piscatório, exigiu, em suma, que o exemplificasse moral e fisicamente ao nosso Pai, e como tal, fez de mim fiel servidor da sua arte de efectuar, dentro das condições climatéricas apropriadas, a colecta vespertina dos seres vivos dotados de barbatanas, pobres criaturas. E pronto, lá fui eu exercer a minha demanda diária, mas desta vez no dia em que mais nenhum dos da minha humilde comunidade foi.”
O chinês, pelos vistos, não tinha percebido NADA.
“VOLTA A DIZER! MAS MAIS DEVAGAR!”
“Eu já expliquei, OI! A CULPA NÃO É MINHA SE NÃO PERCEBERAM! O QUE É QUE QUEREM DE MIM, CARAS DE LIMÃO? IDE VENDER ESPADAS DE PLÁSTICO AOS PUTOS QUE É O QUE VOCÊS FAZEM BEM!”
O chinês ia encher o QUIM de nódoas negras se o Ming Fu não lhe tocasse no ombro. Disse-lhe qualquer coisa em chinês ao seu ouvido. Este sorriu.
“Nós vamos voltar daqui a pouco, e quando voltarmos, vamos trazer o nosso patrão. É só esperares um bocadinho e a nossa ordem para não te fazer mal… altera-se como que por magia.”
Rindo, e dizendo barbaridades lá na sua língua mãe, abandonaram a sala. QUIM PESCAS engoliu em seco. Quem o mandou ser tão chico esperto?
Num casarão que ainda desconhecemos, tocou o telefone. Toca ele uma vez, toca ele duas, toca três, e eis que finalmente alguém se dignou a levantar para o atender. E apareceu uma cozinheira, com a colher de pau na mão e tudo, chateada de terem interrompido o nada que estava a fazer naquele preciso momento.
“Está lá?”
A voz do outro lado era rápida e concisa. A da cozinheira era ainda mais rápida. Posicionou-se logo em posição de sopeira coscuvilheira e debitou as palavras como quem fala da vida alheia.
“Ah, não, neste momento ele não está aqui. Está na lavoura da Adelina, lá em baixo, está a ver, de quem vem da igreja e vira à esquerda, é mesmo em frente, nos diospireiros da Adelina. Você nem imagina a vontade que o OME tem de tratar deles! Eu já disse repetidas vezes que aquela semente não ia dar em nada mas o OME insiste, insiste, ai como ele é casmurro, valha-me o senhor…”
O seu interlocutor disse cerca de três palavras.
“Sim, está bem”, disse ela, incomodada por a terem interrompido, e ainda mais incomodada por ser tão abruptamente mandada para calar a matraca, “Então eu mando o puto ir lá ter com ele para o chamar.”
Do outro lado o indivíduo aceitou.
“Ó BISCAS! ANDA CÁ MALANDRO!”
Do fim do mundo veio um puto a correr, como se correr fosse tudo o que ele queria fazer da vida, ou então com medo de levar uma açorda.
“VAI CHAMAR O OME À LAVOURA! DIZ QUE TEM UM TAL DE ZÉ TOLAS AQUI AO TELEFONE PARA FALAR COM ELE!”
O puto ouviu e zarpou dali para fora. Atravessou a sala, a varanda, o quintal, a horta, o passeio das laranjeiras, o lamaçal, as videiras, a outra horta, atravessou o quintal do vizinho, continuou a correr, desviou-se das galinhas que esvoaçaram feitas tolas, saltou por cima do muro e esbarrou-se numa vaca que estava de passagem.
Caiu no chão. A vaca olhou-o de cima a baixo. Ele olhou-a de baixo para cima. A vaca ignorou-o e continuou a pastar. Ele lá continuou a correr.
Saltou, finalmente, por cima do muro da propriedade do vizinho, e chegou às terras da senhora Adelina, onde encontrou um OME curvado a lavrar com a enxada naquela terra preta e nutritiva.
“Se- se- senhor…”, disse o Biscas, afogueado, a tentar recuperar a respiração, “Tem uma chamada para si!”
“OI! UMA CHAMADA PARA MIM?”, perguntou o OME DO MONTE.
(…)
E não percam a próxima OMAVENTURA, dia 12 de Fevereiro!